A introdução de novas tecnologias no âmbito tributário tem se mostrado um movimento inexorável frente à crescente complexidade das relações econômicas contemporâneas. No Brasil, um dos países com maior carga tributária relativa e normas fiscais dispersas e intricadas, a adoção de ferramentas tecnológicas robustas revela-se imperativa. A blockchain, enquanto tecnologia de registro distribuído, desponta como um mecanismo capaz de redesenhar o modelo tradicional de arrecadação fiscal, proporcionando maior eficiência, confiabilidade e transparência no cumprimento das obrigações tributárias.
Caracterizado por sua imutabilidade e descentralização, o sistema blockchain possibilita a eliminação de intermediários tradicionais e a automação de processos complexos, aspectos particularmente pertinentes ao cenário tributário brasileiro. A estrutura atual, marcada pela fragmentação normativa e pela burocracia, frequentemente coloca contribuintes em posições de incerteza jurídica e dependência técnica, exigindo soluções que equilibrem os interesses fiscais do Estado e a proteção de direitos fundamentais.
Nesse sentido, a blockchain não apenas oferece instrumentos para a modernização administrativa, mas também desafia paradigmas tradicionais de gestão fiscal, ao permitir que a fiscalização e a arrecadação sejam realizadas em tempo real, com maior integração de dados entre contribuintes e órgãos arrecadadores. Este movimento, ao conjugar eficiência tecnológica e segurança jurídica, exige uma análise que transcenda os aspectos técnicos, abordando seus reflexos na estrutura econômica e na relação entre o Estado e a sociedade.
A introdução desse instrumento no ordenamento jurídico brasileiro demanda, além da adequação normativa, um alinhamento estratégico com os princípios constitucionais que regem o sistema tributário. Assim, impõe-se refletir sobre os desdobramentos desse processo, considerando a potencial redução da sonegação fiscal, o fortalecimento da justiça tributária e o papel da blockchain como alicerce de um sistema fiscal progressivamente mais equitativo e sustentável.
O sistema tributário brasileiro em perspectiva
A sistemática tributária brasileira, em razão de sua multiplicidade de normas, destaca-se pela intricada teia legislativa que desdobra a competência tributária entre União, Estados, Distrito Federal e municípios. Essa dispersão normativa, fruto do modelo federativo constitucionalmente estabelecido, culmina em um arcabouço caracterizado por sobreposições, lacunas interpretativas e conflitos de competência. Cada ente federativo exerce sua prerrogativa de legislar e arrecadar de forma isolada, o que resulta em práticas tributárias desconexas e frequentemente conflitantes, além de exacerbar a insegurança jurídica no ambiente econômico.
A fragmentação normativa não apenas amplia o ônus burocrático sobre os contribuintes, como também os submete a uma miríade de obrigações acessórias que, por vezes, exigem duplicidade de informações e conformidade com sistemas desarticulados. Essa sobrecarga operacional fomenta a dependência de assessorias especializadas, elevando custos de conformidade e transferindo para o contribuinte o risco de eventuais falhas de interpretação ou erro material na execução das obrigações tributárias.
Outro ponto nevrálgico encontra-se na regressividade estrutural do sistema, especialmente na incidência de tributos sobre o consumo. Composto majoritariamente por impostos indiretos, o sistema brasileiro onera desproporcionalmente as classes de menor capacidade contributiva, violando o princípio da progressividade e ampliando as desigualdades sociais. Apesar da carga tributária total ser equiparada àquela de economias desenvolvidas, os serviços públicos prestados à população brasileira estão aquém do esperado, o que agrava o descontentamento e a desconfiança dos cidadãos em relação à estrutura tributária e à administração pública como um todo.
A incapacidade do sistema tributário brasileiro de acompanhar a dinamicidade das relações econômicas modernas constitui um dos maiores entraves à sua funcionalidade. A economia digital e globalizada, caracterizada por operações transnacionais, novos modelos de negócio e ativos intangíveis, expõe a obsolescência dos instrumentos tradicionais de tributação e fiscalização, que ainda se apoiam, majoritariamente, em práticas manuais e na autodeclaração do contribuinte.
Essa desconexão entre a estrutura tributária e as demandas da nova economia cria um ambiente propício à evasão fiscal, à elisão agressiva e à perda de arrecadação em setores emergentes. O modelo atual, centrado em declarações anuais e cruzamento de dados limitado, não responde de forma eficiente às operações em tempo real que caracterizam o comércio digital, como o uso de plataformas descentralizadas, transações peer-to-peer e ativos digitais.
Além disso, a ausência de um sistema de fiscalização integrado e harmonizado entre os entes federativos impede o monitoramento abrangente e eficiente das transações econômicas, dificultando tanto a apuração quanto a cobrança dos tributos devidos. Essa falha estrutural não só compromete a arrecadação, como também mina a credibilidade do sistema perante a sociedade.
Por fim, a complexidade do sistema, aliada à sua fragmentação, dificulta a implementação de reformas que visem à modernização e à eficiência. A resistência política, somada às limitações tecnológicas e à falta de uniformização dos processos fiscais, impõe desafios adicionais a qualquer tentativa de transformação estrutural. Nesse sentido, soluções tecnológicas inovadoras, como a blockchain, aparecem como uma possibilidade viável para superar os obstáculos estruturais, permitindo a integração de dados, a automação de processos e o fortalecimento da justiça fiscal.
Blockchain: Criptomoedas
A primeira geração foi concebida com a criação do Bitcoin, que utilizou a tecnologia como base para transações financeiras descentralizadas. O Bitcoin demonstrou a viabilidade de um sistema monetário seguro e independente de instituições tradicionais, inaugurando uma nova era na economia digital.
Blockchain: Contratos inteligentes
A evolução para a segunda geração expandiu o uso da blockchain além das transações financeiras. Com a introdução dos contratos inteligentes, tornou-se possível automatizar a execução de acordos mediante condições pré-programadas, eliminando a necessidade de intermediários e reduzindo os custos operacionais. Essa funcionalidade amplia seu alcance para setores como comércio, logística e, especialmente, tributação, ao permitir a automatização de obrigações fiscais.
Blockchain e o sistema tributário brasileiro
A implementação da tecnologia blockchain em sistemas governamentais internacionais tem demonstrado potencial para redefinir processos fiscais e administrativos. Em El Salvador, por exemplo, a adoção do Bitcoin como moeda de curso legal em 2021 marcou uma integração pioneira de uma rede blockchain descentralizada com as finanças públicas. Essa política possibilitou transações financeiras sem intermediários, promovendo maior acessibilidade aos serviços econômicos para populações não bancarizadas, ao mesmo tempo em que suscitou questões sobre controle estatal e volatilidade de ativos digitais.
Em Singapura, a abordagem regulatória e tecnológica é exemplificada pela emissão de uma moeda digital estatal diretamente vinculada à blockchain, o que integra eficiência na administração tributária com maior transparência no monitoramento de transações. Essa iniciativa busca alinhar a arrecadação fiscal à era digital, reduzindo a evasão fiscal e otimizando o controle de operações transnacionais.
A China, ainda que avessa à adoção de criptomoedas, demonstrou grande interesse na blockchain como tecnologia estruturante. A emissão de notas fiscais eletrônicas baseadas em blockchain reflete a intenção de fortalecer a fiscalização tributária, prevenindo fraudes e unificando informações fiscais de forma descentralizada, porém com controle central estatal.
No Canadá, iniciativas de uso experimental da blockchain em auditorias fiscais destacam-se pela aplicação da tecnologia no monitoramento em tempo real de transações financeiras empresariais. Isso permite maior precisão na fiscalização, reduzindo a necessidade de auditorias tradicionais e otimizando os recursos administrativos do Fisco.
Esses exemplos ilustram a diversidade de abordagens e os impactos que a blockchain pode gerar em sistemas tributários, oferecendo referências para a aplicação no Brasil, que pode adotar estratégias híbridas que equilibrem inovação tecnológica e segurança jurídica.
A aplicação da blockchain no sistema tributário brasileiro apresenta possibilidades concretas para a simplificação e automação de obrigações acessórias, que hoje oneram desproporcionalmente os contribuintes e o aparato estatal. Por meio de registros imutáveis e descentralizados, a tecnologia pode integrar sistemas fiscais Federais, estaduais e municipais, promovendo maior uniformidade nos procedimentos.
A automação baseada em contratos inteligentes é uma das aplicações mais promissoras. Esses contratos poderiam operacionalizar a retenção e o recolhimento automático de tributos em transações comerciais, reduzindo a necessidade de intervenção manual. Além disso, a utilização de chaves criptográficas permitiria a autenticação segura dos dados, mitigando riscos de fraudes e inconsistências.
Outro ponto relevante é o cruzamento de informações em tempo real. A blockchain possibilitaria que dados fiscais fossem acessados e auditados automaticamente por diferentes órgãos administrativos, eliminando redundâncias e reduzindo o tempo gasto em processos de fiscalização. Isso favoreceria tanto a agilidade na arrecadação quanto a transparência, promovendo maior adesão voluntária ao sistema.
Além disso, a auditoria em tempo real proporcionada pela blockchain não apenas coíbe práticas ilícitas, mas também elimina etapas burocráticas desnecessárias, permitindo que recursos administrativos sejam direcionados para áreas estratégicas da administração tributária. Essa abordagem amplia o alcance da fiscalização e reduz custos operacionais, gerando ganhos de eficiência para o Estado e segurança jurídica para os contribuintes.
A introdução de uma tecnologia como a blockchain no modelo tributário brasileiro é especialmente relevante no contexto da proposta de criação de um IVA – Imposto sobre Valor Agregado. Ao integrar um sistema fiscal unificado e automatizado, a blockchain tem o potencial de viabilizar uma tributação mais justa e eficiente, reduzindo as distorções históricas associadas à guerra fiscal entre os estados.
A transparência inerente ao sistema blockchain poderia assegurar maior rastreabilidade das transações que compõem a cadeia produtiva, permitindo uma apuração mais precisa dos créditos tributários. Esse processo não apenas simplifica o cálculo dos tributos devidos, como também reduz o risco de erros e contestações, beneficiando tanto os contribuintes quanto o Fisco.
Ademais, a blockchain pode ser integrada ao controle de tributos como ICMS, ISS e IPI, permitindo um sistema integrado e menos suscetível a fraudes e sonegações. A automação fiscal, baseada em smart contracts, pode eliminar o atraso no recolhimento de tributos e reduzir a dependência do preenchimento de declarações manuais, mitigando os problemas relacionados à morosidade e ao erro humano.
Por fim, a utilização da blockchain em um modelo fiscal progressivo permite a personalização da arrecadação, levando em conta a capacidade contributiva de cada agente econômico, o que amplia a percepção de justiça tributária e promove maior equidade na distribuição da carga fiscal. Essas inovações, se implementadas com base em marcos regulatórios claros, podem transformar a gestão tributária no Brasil, alinhando-a aos padrões tecnológicos e econômicos globais.
Fonte: Migalhas
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